24 de Junho de 2000 - Público
Menos Injustiça nos Impostos
Por FRANCISCO SARSFIELD CABRAL
Na próxima semana o Governo vai apresentar as suas
primeiras propostas de reforma fiscal, começando pelo IRS. Mas, com as
despesas correntes do Estado a aumentarem imparavelmente (pois não se
fizeram as reformas e acabou a bonança da descida dos juros) e com a
cobrança dos impostos abaixo das previsões (irrealistas) do Orçamento,
a grande preocupação do Governo é conter o défice das contas públicas.
Uma preocupação prestes a transformar-se em genuína angústia,
proporcionando um clima que não é o ideal para reformar o sistema
tributário. No entanto se, como prometido, as reformas aí vierem,
alguma coisa de positivo poderá conseguir-se.
Desde logo, no ataque à maior injustiça fiscal,
entre as muitas que entre nós existem: a descomunal fuga aos impostos,
levando os contribuintes cumpridores a pagarem a dobrar - por eles e
pelos que fogem. Tornou-se claro que a administração fiscal vai,
finalmente, poder ter acesso em certas condições às contas bancárias
dos suspeitos de evasão e fraude. O acordo sobre harmonização fiscal,
conseguido no Conselho Europeu de Santa Maria da Feira, mostra como o
sigilo bancário deixou de ser um tabu no mundo civilizado. E entre nós
multiplicaram-se, nos últimos tempos, as tomadas de posição favoráveis
a um regime de sigilo bancário semelhante ao da quase totalidade dos
nossos parceiros europeus (onde não é preciso passar por um juiz para
a administração fiscal examinar uma conta bancária). Por exemplo,
vozes do PSD, de Cavaco Silva a Marques Mendes, têm agora defendido
essa limitação do sigilo bancário, que desde há anos me parece
indispensável (embora não suficiente) para travar a evasão fiscal. É
sobretudo um sinal que se transmite à sociedade, um sinal de firmeza
política e de inconformismo perante a imoralidade reinante.
A circunstância infeliz de o Governo se encontrar
aflito com as contas públicas obriga, porém, a redobradas precauções.
Há que dar garantias de que a administração fiscal não irá abusar
da abertura do sigilo bancário. Não é fácil, decerto, porque os
portugueses não têm confiança no Estado, o que bem se compreende. Mas
é indispensável assegurar o direito de defesa dos contribuintes, até
para que este avanço se não transforme num retrocesso, perante
eventuais suspeitas de que a administração fiscal poderá utilizar a
abertura do sigilo bancário para perseguições políticas ou pessoais.
As mudanças vão começar pelo IRS, onde muita coisa
pode e deve ser melhorada, a bem da justiça fiscal. Um exemplo de
injustiça: a actual discriminação tributária contra as famílias
numerosas. Essas famílias não são tratadas pelo fisco de maneira
equitativa e proporcional aos seus rendimentos por cabeça, como mostra
a drª Luísa Anacoreta Correia no estudo "Família e
Fiscalidade" (editado pela Associação Portuguesa de Famílias
Numerosas). Assim, o IRS incentiva o primeiro filho, mas a partir daí -
embora com o nascimento de mais filhos as despesas familiares aumentem -
o incentivo diminui muito. No IRS, o quarto e o quinto filhos beneficiam
apenas de cerca de 25 por cento do "benefício" do primeiro.
Na dedução das despesas de educação, um casal com gastos de 15
contos mensais com um filho tem uma poupança fiscal de 54 contos por
ano; se forem três os filhos, essa poupança desce 17 por cento; se
forem nove, cai mais de 50 por cento. Com despesas mensais de 30 contos
na educação por dependente, uma família com um filho poupa 104 contos
por dependente; com nove, não chega a poupar 22 contos por
dependente... Para além da injustiça, não parece ser esta a melhor
maneira de combater o actual, e preocupante, envelhecimento da população,
com todos os problemas que essa evolução está a trazer - desde a
necessidade de "importar" trabalhadores imigrantes até à
crise financeira da segurança social.
Claro que as reformas nos impostos são decisões políticas
e como tal sujeitas às pressões dos grupos de interesses particulares.
Ora, a associação das famílias numerosas não tem um poder comparável
ao de muitos outros grupos de pressão. Por exemplo, dos
"lobbies" do sector automóvel, tão activos e fortes que, no
Orçamento de 2000, não deixaram eliminar "a escandalosa e
injustificada discriminação a favor dos jipes e outros veículos
especiais". Quem o lembra é o ex-ministro das Finanças Sousa
Franco ("Diário de Notícias" de 6 de Junho), que tanto se
tem queixado das distorções fiscais decorrentes das pressões dos
"lobbies" - incluindo os da administração pública.
Como, então, fazer prevalecer o interesse geral sobre
os interesses particulares na reforma fiscal? Primeiro, promovendo uma
discussão aberta, e não apenas compreensível por especialistas dos
impostos, sobre as alterações que se propõem. Acontece ainda que,
sobretudo no caso da fuga e da evasão fiscais, a maioria dos
portugueses até pode vir a apoiar medidas moralizadoras, se as pessoas
para tal estiverem politicamente mobilizadas. Poderia, assim, superar-se
a maior capacidade de alguns interesses particulares para fazer barulho
- incluindo assustarem a opinião pública e assim condicionarem o
Governo e o Parlamento. Ou seja, este é um campo onde os governantes
contam potencialmente com uma apreciável base de apoio. Só que, para a
concretizar, têm de ser capazes de gerir politicamente o assunto, sem
demagogias mas com sentido da equidade. Ora, é essa capacidade que
falta, ainda, evidenciar.
Francisco Sarsfield Cabral
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