O mundo era bem mais fácil de compreender se fosse a
preto e branco. E Portugal seria muito mais fácil de
governar se fosse plano como uma mesa de bilhar e os
portugueses medissem todos 1,72 metros e fossem
morenos de olhos castanhos. Só que nem a realidade é
preto e branco, nem o país é liso e sem rugas, nem
somos todos iguais. Felizmente para cada um de nós e
para a humanidade, mas algo que acarreta uma enorme
trabalheira. Exige leis e mais leis, pois não há
nada como uma boa lei para transformar uma montanha
numa planície - ou pelo menos assim pensam muitos
governos, o nosso incluído.
A fúria legislativa de tudo uniformizar foi
recentemente denunciada, em entrevista ao PÚBLICO e
à Renascença, por Joaquim Azevedo, quando lamentou
que o Ministério da Educação se tivesse recentemente
ocupado da magna questão de regulamentar as
dimensões dos cacifos dos alunos nas escolas básicas
e secundárias (!!!). Mas a este exemplo kafkiano
podemos juntar dois dos últimos dias.
Um fez ontem a primeira página do PÚBLICO: o Governo
decidiu impor à banca, em nome da defesa do
consumidor, que as comissões para amortização ou
liquidação de empréstimos no crédito à habitação
fiquem limitadas a 0,5 por cento. A medida é
popular, até porque alimenta o mais recente ódio de
estimação dos nossos governantes, a poderosa banca,
mas ao justificá-la o secretário de Estado da Defesa
do Consumidor utilizou o pior dos argumentos:
"Queremos que os bancos concorram pelas taxas e não
com comissões escondidas." Ou seja, quer que o mundo
seja plano e que todos os dilemas tenham apenas uma
variável e, para o justificar, utilizou o argumento
da alegada falta de transparência. Na verdade, o
Governo não tinha nada que legislar sobre estas
taxas, tal como não devia tratar das minudências dos
cacifos. Num mercado concorrencial e aberto, como é
o mercado bancário, são inúmeras as variáveis que
podem influenciar a escolha do consumidor. Uma taxa
mais baixa pode ser conseguida alargando o prazo do
empréstimo, ou transferindo todas as contas para uma
determinada instituição bancária, ou fazendo lá os
seguros, ou reforçando as garantias dadas como
caução. Aceitar uma penalização maior por
amortização antecipada podia ser uma escolha dos
clientes, desde que devidamente informados. Ora em
vez de actuar para garantir a transparência da
informação e assegurar que as autoridades
reguladoras intervêm de forma eficaz, o Governo
preferiu diminuir as variáveis para tentar tornar o
mundo menos complexo. Ora como a banca por certo não
abdicará das suas margens, o consumidor final pagará
noutra factura, pois a única forma de realmente o
beneficiar seria garantir que a concorrência
aumentava mesmo. Fez-se o contrário, pois é duvidoso
que regulamentar tudo, e tornando tudo mais igual, a
concorrência aumente.
Mais absurdas são ainda algumas das regras a que
terão de se submeter os pescadores de fim-de-semana
e que ontem foram tornadas públicas. Só um burocrata
que nunca tenha passeado pelos pontões onde se
juntam algumas rotundas barrigas com as suas
famílias ou alguém que nunca tenha deixado o bolor
da sua repartição pública para experimentar descer
uma das falésias do nosso litoral para se aproximar
dos melhores pesqueiros pode considerar razoável, ou
protector das espécies, impor aos pescadores que
estes devem guardar dez metros de distância uns dos
outros. E só quem nunca tenha visto como a
actividade serve de entretém a muitos reformados de
parcos rendimentos pode ter como razoável
exigir-lhes as taxas pedidas quando estes pouco mais
catarão do que umas sarguetas para fritar e
acompanhar com arroz de tomate.
A cultura centralista, regulamentadora e castradora
do nosso funcionário público é secular. Alimentada
pela filosofia "iluminada" de alguns governantes
torna-se num patético pesadelo burocrático.