Público - 22
Dez 06
Milhões de polícias
Vasco Pulido Valente
Na Inglaterra e na América é politicamente
incorrecto, e hoje quase criminoso, festejar o
Natal. Porquê? Porque, celebrado com tanta
exuberância, o Natal se arrisca a ofender (ou a
convencer) os crentes de religiões minoritárias,
sobretudo, claro está, os muçulmanos. Mas como não
se pode proibir o Natal, coisa que decerto os
puristas gostariam de fazer em nome dos direitos do
homem, a ortodoxia política tem por enquanto de o
camuflar. Isto obriga naturalmente a algumas
contorções verbais, a muita hipocrisia e a uma boa
dose de intimidação. A "árvore de Natal" passou a
"árvore da amizade" e o "jantar de Natal" a "jantar
do solstício de Inverno". Os "cartões de Natal" são
agora também "cartões da estação" e o "Bom Natal",
suponho, "Boa Estação".
Nos países católicos, como Portugal, esta espécie de
purga ainda não começou. Mas cá chegará, com o
atraso e o zelo do costume. Entretanto, mesmo aqui,
o totalitarismo (e uso a palavra deliberadamente)
alastra sem sombra de protesto. O comportamento
"aceitável" do cidadão comum é regulado e é imposto
ao pormenor: e ninguém percebe, ou nota, o que se
passa. No princípio da semana, por exemplo, um
rapazinho fanático, porta-voz da Deco, exigia que o
Estado obrigasse por lei qualquer restaurante (ou
qualquer hotel) a admitir crianças. Segundo a
lunática lógica da criatura, o princípio da
igualdade, constitucionalmente consagrado, obrigava
a essa medida de justiça. Não lhe ocorreu que o
princípio da igualdade não se aplica, sem
qualificação, a crianças. Como não lhe ocorreu que
se propunha limitar a liberdade do próximo. A ideia
de que há restaurantes que oferecem cerimónia e
sossego e pessoas que gostam de cerimónia e sossego
só lhe inspira desprezo. Se o consumidor que a Deco
defende quer jantar entre correrias, choradeira e
berros, o Estado não deve permitir outra maneira de
viver. O resto não interessa.
Pouco a pouco, os "direitos do homem", pervertidos
por pequenos grupos de pressão, que o Estado muitas
vezes sustenta (para não ir mais longe, somos nós
quem paga a Deco), vão servindo para criar uma
sociedade minuciosamente vigiada. Não existe a menor
diferença entre a actual ortodoxia "bem-pensante" e
o jacobinismo ou o comunismo clássico. É a velha
ambição de criar um homem racional e perfeito pela
força política. Não por acaso os "marxistas" de
ontem prosperam neste novo mundo. A tolerância
sempre foi ou já se transformou em intolerância e há
lugar para milhões de polícias. |