Público - 22
Dez 06
A censura "catequística"
Esther Mucznik
A três dias da comemoração do Natal, acende-se hoje
a oitava e última vela de Hanucá - a celebração
judaica que, por desconhecimento, alguns chamam
"Natal dos judeus". Com efeito, Hanucá nada tem a
ver com o Natal, a não ser o facto de acontecer
normalmente no mês de Dezembro. É uma festa cuja
celebração anual evoca o combate milenar judaico
contra a assimilação e o aniquilamento espiritual.
Esta celebração, descrita nos Livros 1 e 2 dos
Macabeus do Antigo Testamento, tem por base a
insurreição judaica, no ano de 168 antes da era
cristã, contra a helenização forçada da Judeia. Com
efeito, à relativa tolerância religiosa vigente no
reinado de Alexandre, o Grande, sucede - com a morte
deste e a divisão do seu império - a tentativa de
impor, na Judeia, a uniformidade religiosa e
cultural, sob a cultura e religião helénicas. É
assim proibida a celebração do Shabat, a
circuncisão, a alimentação kosher, ritualmente pura,
e sobretudo é profanado e saqueado o Templo de
Jerusalém e, no seu seio, celebrado o culto de Zeus.
Diz o Livro dos Macabeus que perante esta
"abominação da desolação (...), a própria Terra se
comoveu com a consternação dos seus habitantes e a
Casa de Jacob cobriu-se de vergonha". Mas a
"vergonha" transforma-se em revolta, a revolta em
insurreição, e, contra todas as probabilidades, sai
vitoriosa: Jerusalém é libertada e o Templo
inaugurado - daí o nome de Hanucá, que significa
inauguração - no ano de 165 antes da era cristã. É
este "milagre" da vitória da sobrevivência
espiritual, simbolizado pelas luzes de Hanucá, que o
mundo judaico comemora anualmente, acendendo velas
durante oito dias.
Será que 2200 anos depois, este combate ainda é
actual? Será que em sociedades abertas, livres e
democráticas, onde cada um pode livremente praticar
a sua fé e viver plenamente a sua cultura, ainda é
necessária a sua defesa? Contra todas as
expectativas, a resposta é afirmativa.
Evidentemente, já não se trata do perigo de
instituição do culto de Zeus ou de qualquer outro em
sinagogas, igrejas ou mesquitas. Muitos templos
judaicos e islâmicos foram transformados em igrejas
nos séculos XIV, XV e XVI e a Inquisição perseguiu
ferozmente todas as "heresias". Mas, no Ocidente,
essa forma de aniquilamento espiritual foi tornada
caduca pelos valores da liberdade e em particular da
liberdade religiosa, da separação do Estado e
religião e da secularização da sociedade. Nas
sociedades de pluralismo cultural e religioso de
hoje, ela foi substituída pelo laicismo
"politicamente correcto" - porque actua em nome da
tolerância face aos outros credos -, que exerce de
facto uma função persecutória, obviamente, não sobre
as pessoas do ponto de vista físico, mas sim sobre o
pensamento.
Senão como qualificar esta vaga - que seria
ridícula, senão fosse de mau agoiro - que se tem
manifestado nalguns países europeus, no sentido de
proibir ou "banir" os festejos de Natal em escolas e
em empresas e até os cartões a desejar Bom Natal?
Como qualificar a proibição e suspensão de uma
funcionária da British Airways por usar uma cruz ao
peito? Como qualificar, em Portugal, o protesto da
Associação República e Laicidade contra a "demissão"
do Ministério da Educação em contrariar actividades
de tipo "catequístico" como seja a inserção numa
revista de professores do 1º e 2º ciclo do Ensino
Básico de uma representação do nascimento de Jesus,
sob pretexto da incapacidade dos mesmos de
"trabalhar" e "aprofundar" com as criancinhas as
questões metafísicas que essa representação coloca e
que a Associação exemplifica assim no seu site:
"Deixamos aqui algumas perguntas que se nos afiguram
tão difíceis quanto pertinentes: Que é "ficar
grávida"? Como acontece a "gravidez"? Haverá três
tipos de inseminação - a "natural", a "artificial" e
a "sobrenatural"? Que é "Deus"?"... E assim por
diante. Mais uma vez, seria apenas ridículo, senão
fosse evidente a má-fé, porque é óbvio que nenhum
professor no seu perfeito juízo se vai pôr a
explicar essas noções a crianças entre os seis e dez
anos de idade. Mas acima de tudo será que uma
tradição e uma cultura se transmitem, sobretudo a
crianças, pela explicação de conceitos? A resposta é
evidente e só quem não tem a mínima noção do que é a
educação e a transmissão de valores pode colocar as
questões nesse pé... Mas a associação vai mais
longe: propõe substituir a comemoração "catequística"
do Natal pela celebração da "paz e a solidariedade
entre os homens, numa perspectiva claramente
humanista", conceitos em sua opinião certamente
muito mais simples de explicar...
Na verdade, o que a Associação República e Laicidade
defende é uma visão ideológica muito "progressista"
dominante no nosso ensino onde estão presentes todos
os temas do "politicamente correcto", tais como o
racismo, o colonialismo, o imperialismo, o apartheid,
o pacifismo, mas na qual o concreto dessas noções é
substituído pela proclamação de generalidades
bem-pensantes e por apelos ocos à paz e à concórdia
universais...
A laicidade, tal como vem expressa na lei de
liberdade religiosa, implica a neutralidade
religiosa do Estado, mas não a evacuação da religião
do espaço público. A confusão entre as duas noções
característica daquela associação tende a
transformá-la numa espécie de fiscal de vigilância
do espaço público, atento ao menor indício de
expressão "catequística". Nessa ordem de ideias, não
terá sido o acender público do candelabro de Hanucá
no Porto, no passado fim-de-semana, também uma
transgressão da laicidade? Ou a cedência do espaço
camarário Fórum de Lisboa à comunidade judaica de
Lisboa para a comemoração da mesma festa?
Não é o caso em Portugal, mas o argumento invocado
noutros países de não comemorar o Natal para não
ofender os outros crentes, nomeadamente de religião
islâmica, não colhe. A liberdade religiosa é feita
da expressão plural das diversas confissões, não do
silenciamento "igualitário" de todas.
É evidente que essa liberdade não é absoluta. São
sempre necessários compromissos entre os valores
universais e as identidades particulares, entre os
valores, os costumes e as tradições que constituem o
cimento necessário à coesão social e espiritual de
uma determinada sociedade e as expressões
minoritárias. Mas, contrariamente à tendência
actual, esse compromisso não se obtém através do
rolo compressor do laicismo, apagando a riqueza da
diversidade, mas sim através de uma negociação
permanente, base de qualquer sociedade democrática.
Investigadora em assuntos judaicos |