Público - 22
Dez 06
Ofensas de Natal
Constança Cunha e Sá
Com medo de ofender não crentes e crentes de outras
religiões, o Natal está em vias de se transformar
oficialmente numa festa laica, dedicada ao consumo e
a todos os homens de boa vontade que entopem os
centros comerciais com o décimo terceiro mês e a
habitual tralha da época: o lenço para a tia, o jogo
para o filho, o perfume para a amiga e uma coisa
qualquer para o almoço da empresa onde os empregados
convivem com o patrão e a felicidade irradia.
Seguem-se ainda as reuniões da praxe, com a família
(em vias de extinção) reunida à volta de um monte de
embrulhos e de um peru congelado que parece ter
também os dias contados: segundo pude ler no PÚBLICO
(17/12/06), há quem queira substituir este perigoso
símbolo por um simples frango de todos os dias
acompanhado, presume-se, de legumes cozidos e de
algumas folhas de alface. Bolo-rei, rabanadas,
sonhos e fatias douradas deviam, com maioria de
razão, abandonar o menu da consoada, podendo ser
substituídos por saladas de fruta que têm a superior
vantagem de não contribuir para a obesidade das
criancinhas. Nada impede o Estado, que passou a
controlar as ementas das escolas, de entrar em casa
das pessoas e de definir, de uma vez por todas, o
seu tipo de alimentação. Os doces e o açúcar com que
os pais encharcam os seus rebentos, onerando o
Sistema Nacional de Saúde e contribuindo para a
falência do Estado social, são tão prejudiciais como
o tabaco que tão zelosamente tem sido combatido.
Tudo isto para dizer que numa sociedade onde a saúde
se instituiu como valor absoluto e o Estado se
transformou no seu principal garante, é natural que
o sagrado seja substituído por um conjunto de regras
invioláveis que obriga todos os cidadãos a ter uma
vida saudável, limpa de excessos e de qualquer vício
repugnante. Tudo o resto é secundário e, há muito,
que deixou de ter significado. A começar pela
religião que alguns pretendem reduzir à intimidade
da consciência, sem perceber que ela deixou de
existir na intimidade dessa mesma consciência e que
as suas manifestações públicas se transformaram num
hábito ou num ritual que, com o tempo, foram
perdendo o seu sentido original.
O presépio, que, este ano, foi proibido nalgumas
cidades, a expressão "Feliz Natal" que parte das
empresas britânicas decidiu banir do seu vocabulário
ou as festas que uma escola de Saragoça resolveu
proibir "para não incomodar as crianças de outras
religiões" (ou por alegada falta de tempo e de
espaço físico, conforme explicava, ontem, no
PÚBLICO, a Associação República e Laicidade) são
apenas símbolos culturais que já pouco ou nada devem
à sua origem religiosa. Mais do que um sinal de fé,
o presépio ou a árvore de Natal são tradições ou
costumes que não correspondem obrigatoriamente a uma
crença religiosa específica, não podendo, portanto,
"ofender" os que não partilham de algo que não
existe. Aliás, a "ofensa", essa "ofensa" que o
Ocidente tanto receia, exige que o "ofendido" se
deixe guiar por uma única verdade e por um genuíno
desprezo pelos artifícios da cultura que desvirtuam
a imagem do sagrado e a exclusividade da sua fé.
Convenhamos que não é nas sociedades laicas do
Ocidente, onde a religião se esfumou e os seus
vestígios são encarados como privilégios
inaceitáveis num Estado de direito, que as "ofensas"
mais se fazem sentir - embora seja nas sociedades
laicas do Ocidente que mais importância se dá a
essas "ofensas" religiosas, submetendo uma
identidade comum e um conjunto de tradições à
radicalidade do olhar do "outro" e impondo, por
decreto, uma tolerância que tolera apenas aquilo que
é diferente e que, em nome dessa diferença, pretende
limpar o passado de qualquer conotação "ofensiva". E
assim se torna "ofensiva" uma quadra que já não
ofende ninguém - a não ser algum bispo mais
reaccionário que ainda não se converteu ao
materialismo dos novos tempos!
O zelo com que é levado a cabo este exercício de
limpeza, impede os seus praticantes de perceberem
que os símbolos do Natal, como a maior parte dos
símbolos que passam por religiosos, perduram para
além das suas ligações ao sagrado e fazem parte de
um património cultural que não é exclusivo de uma
comunidade de crentes. Como se calcula, os
engarrafamentos diários que se formam, em Lisboa,
para ver a árvore de Natal, no Terreiro do Paço,
dificilmente podem ser vistos como peregrinações
religiosas de fiéis alvoroçados com o nascimento de
Cristo. Retirar a árvore de Natal de um local
público, como chegou a ser feito no aeroporto de
Seattle, ou impedir a construção de um presépio,
como aconteceu na escola de Saragoça (a Associação
República e Laicidade que me desculpe, mas a falta
de espaço físico supõe umas instalações
absolutamente exíguas ou um presépio
inexplicavelmente gigantesco que não parecem muito
verosímeis), revela uma intolerância cega face a
qualquer manifestação cultural que se desvie do
sagrado direito à diferença - que não é mais do que
uma forma ínvia de tornar tudo e todos iguais.
Curiosamente, o património cultural que o Ocidente
vai retalhando ao sabor das "ofensas" alheias, e a
que nem o Idomeneo de Mozart escapou, é visto
simultaneamente pelo Ocidente como um bem inviolável
que pertence a toda a humanidade. Quando, há uns
anos, os taliban destruíram as estátuas de Buda, em
Bamiyan, no Afeganistão, foi visível a indignação
pública contra este atentado cultural praticado pelo
fanatismo dos que se deixam "ofender" por tudo o que
contraria as suas convicções. Os actuais defensores
do "outro" e das suas hipotéticas "ofensas"
esquecem, ou preferem esquecer, a intolerância e o
fundamentalismo em que assentem essas "ofensas". É
mais fácil proibir o presépio, acabar com as árvores
de Natal, deixar de tocar as missas de Haydn e
esconder as muitas Madonas que foram pintadas por
esses séculos fora sem levar em linha de conta as
"ofensas" dos que legitimamente não crêem na Virgem
Maria. Jornalista |