Expresso -
16
Dez 06
Conversação, pobreza e família
João Carlos Espada
A conversação livre permitiu hoje, ao fim de mais de
vinte anos, alcançar um consenso: a desagregação da
família é um dos principais factores da pobreza em
Inglaterra (bem como nos EUA)Na semana passada
participei, em Cambridge (Reino Unido), num colóquio
promovido pela fundação norte-americana Liberty Fund
sobre o filósofo inglês Michael Oakeshott. Entre os
vários aspectos comuns ao pensamento de Oakeshott e
ao da Liberty Fund, um merece particular destaque: a
centralidade da conversação civilizada numa
sociedade livre.
O tópico pode parecer abstracto, mas experimentei
por acaso a sua aguda relevância política.
Numa das manhãs, o noticiário da BBC abriu com o
relatório de um grupo de estudo do partido
conservador sobre o aumento da pobreza em
Inglaterra: o principal factor desse aumento era
estatisticamente atribuído à desagregação da família
biparental monogâmica. A BBC foi ouvir um comentador
do ‘Guardian’, o diário líder à esquerda.
Surpreendentemente, este disse que a desagregação da
família era inquestionavelmente um dos principais
factores da pobreza em Inglaterra. A grande questão,
acrescentou, residia em saber como inverter essa
desagregação.
Em seguida, foram passados em revista alguns dos
dados. As crianças oriundas de famílias
monoparentais constituem 70 por cento dos jovens
delinquentes pobres. Têm também 70 por cento mais
hipóteses de consumir drogas do que os oriundos de
famílias biparentais. Um em cada dois casais não
casados - contra um em cada 12 para os casados -
separa-se antes dos cinco anos do primeiro filho.
Estes dados, e muitos outros semelhantes, não são
propriamente novos. Foram pela primeira vez
corajosamente publicados em 1984 por Charles Murray,
num livro dedicado à realidade americana intitulado
‘Losing Ground’. Foi um dos primeiros livros que
Ralf Dahrendorf me mandou ler, quando cheguei a
Oxford em 1990. Dahrendorf discordava de Murray (e
eu também comecei por discordar). Mas Dahrendorf
achava o argumento de Murray importante, e achava
importante conversar com o argumento dele. Doze anos
mais tarde, em 2002, jantámos os três, em Roma, e
conversámos amenamente sobre este episódio.
Nesta perspectiva, a consonância da semana passada
entre o ‘Guardian’ e o estudo conservador sobre a
família é menos surpreendente. Ele é fruto de uma
longa conversação, que as divergências nunca
interromperam. Como dizia Oakeshott, as nossas
sociedades permanecerão livres enquanto pudermos
continuar a conversar. E, como diria Popper, que em
muitos aspectos discordava de Oakeshott, é essa
conversação que nos permite aprender com os nossos
erros - o que é bem mais difícil do que denunciar os
erros dos outros.