Diário de Notícias -
15
Dez 06
Imogen
Maria José
Nogueira Pinto
Na terça-feira tinha encontro marcado com Imogen.
Por vezes a agenda, esse livro de capa negra com
dias e horas, sobrepõe-se à minha vontade e, o que é
bem pior, à minha convicção do que realmente vale a
pena. Desta vez não deixei. Pressenti que Imogen era
o mais importante.
Uma manhã fria, a luz doirada do Outono lavando
tudo, reconciliando-me com a cidade, recortando
nítido o perfil do Palácio da Ajuda. E ali perto,
entrei numa casa-mãe, feita e mantida com o esforço
dos heróis que, nestes tempos baços, lutam por
"conseguir vencer os impossíveis para alcançar o
necessário e o urgente", somando dia-a-dia as
pequenas/grandes vitórias daqueles que ali alcançam
o primeiro patamar da sua dignidade humana.
Neste sítio que "apazigua corações magoados" nada é
trivial, vácuo, dispensável, supérfluo, retórico.
Como tantas coisas que preenchem a minha agenda, com
a sua componente de pão e circo e os inesgotáveis
exercícios verbais que o próprio exercício da
política nacional reivindica no seu modelo apoucado
e suicida. Por isso, ao longo de todos estes anos em
que me dediquei ao serviço público, são estes
momentos os que, finalmente, dão sentido a tudo.
Estou a falar da Liga, do seu motor turbo e
humano que é a Guida Faria, de todos os que ao longo
de 50 anos fizeram do impossível possível, travaram
combates desiguais, elevaram a sua voz, ofereceram
os gestos das suas mãos e literalmente arrancaram do
buraco cósmico em que tinham caído muitas crianças
portadoras de severas deficiências, para as devolver
ao ponto de partida de um caminho heróico de amor e
vontade, com avanços e recuos, alegrias e
sofrimentos, medos e coragem, partilhados por
famílias muitas vezes desorientadas, exaustas,
perdidas.
Foi graças à Liga que conheci Nicola Maher.
Uma mulher loira, nova e bonita que escreveu um
livro, A mais Minúscula Guerreira, após o
nascimento prematuro da sua filha Imogen, que pesava
pouco mais de 800 gramas. Um livro que sendo
formalmente "infantil" constitui pela linguagem, a
magia narrativa e a beleza das ilustrações um
poderoso testemunho.
É a história de se abrir a porta, mesmo quando o
passo em frente é perigoso, de se ser segurado antes
de cair, de acreditar que "ser valente é igual a ter
medo - é apenas um passo para ir mais adiante".
Imogen sobreviveu e vive. Foi ela, afinal, a parte
mais forte daquela relação. Como imediatamente o
demonstrou quando, com os seus 800 gramas, conseguiu
agarrar com inverosímil força, um dedo da mão de
Nicola.
Nessa manhã foi-me possível deixar correr uma
lágrima. Um luxo, nos tempos que correm, sem pausas
que permitam que as emoções nos dominem e, deste
modo, nos reconduzam à singular condição de humanos,
verdadeiramente irmanados na nossa comum humanidade
e nada mais, pois é quanto basta.
Nesta cultura de fortes e fracos, apologética dos
sinais exteriores de sucesso, das percepções
duvidosas da felicidade e da realização pessoal, que
busca a cada momento os vitoriosos do dia, nesta
sociedade que desistiu de pensar, toda a ideia e
sentimento mediados por tablóides e ecrãs,
tornamo-nos meros espectadores passivos das pequenas
mentiras com que se contam as histórias que não
existiram, os feitos que não valeram a pena, o
trabalho que não produziu semente, as mesquinhas
glórias do efémero, consentindo que nos roubem o
essencial de sermos gente e estarmos vivos.
O melhor que me aconteceu, e continua milagrosamente
a acontecer, é encontrar o outro real, igual a mim,
também real, nestas casas- -mãe onde se cuida
lutando e se ensina a lutar, nos bairros, nas ruas,
no meu gabinete, nos sms do meu móvel, nos
mails do meu computador, nas cartas que chegam
em envelopes baratos, escritas com letra trémula ou
irregular indicando pobreza envergonhada, doença,
iliteracia ou solidão. E nesses encontros,
consciente da muita dor, muita revolta dos que não
entendem porque razão a sociedade, o Estado, as leis
e o Orçamento se esquecem deles, tomar consciência
que perante a injustiça da má governação, das más
prioridades tantas vezes reflectidas nas políticas
públicas, da iniquidade da má distribuição dos
recursos, das más escolhas de "uns mais iguais que
outros", me resta ainda a possibilidade de ouvir,
dar a mão, oferecer o ombro e chorar também.
O que me recentra no que vale a pena, o que me
transporta para a realidade, o que me defende de
passar ao lado, o que não me deixa distrair, são
eles.
A todos os minúsculos guerreiros e guerreiras, a
todas as mães e pais, a todos os cidadãos de boa
vontade que lutam ombro a ombro, dia a dia, para
fazer a demonstração do possível, num tempo e num
modo onde o que é difícil e está a mais se oculta
(não se vá estragar a fotografia e o discurso
oficial), o meu obrigada!