Correio da Manhã - 09
Dez 06
Desertificação
Aldeias de
famosos à beira da extinção
Luís Oliveira/Luís Costa Ribeiro
Se as aldeias pudessem crescer à
sombra dos grandes vultos que nelas nasceram muitas
do Interior do País não estariam a assistir ao êxodo
da população para as capitais de distrito e para o
Litoral do País. Escritores, políticos, religiosos,
artistas e outros vultos da sociedade portuguesa
teriam então mais um papel fundamental. Não é isso
que está a acontecer e a desertificação varre
indiscriminadamente os povoados.
Vende-se’ – a inscrição em letras
garrafais seguida de um número de telefone está numa
placa torta, queimada pelo Sol, na janela de uma
casa que não consegue cativar interessados há muito
tempo. O silêncio prolongado é perturbante. Nas ruas
não há vivalma até se chegar à Praça Eduardo
Lourenço. Aí, o Pedro Miguel, de oito anos, espera
pela hora das aulas e brinca com um cão. Na varanda
de casa Manuela Lourenço, de 86 anos, delicia-se com
uma sopa de legumes e arroz de feijão – almoço
entregue pelas funcionárias do centro social.
Vivem ambos, e são dos poucos habitantes, em São
Pedro de Rio Seco, no concelho de Almeida – a quatro
quilómetros de Espanha – onde há 83 anos nasceu o
professor e ensaísta Eduardo Lourenço. A aldeia –
como muitas do Interior – tem cada vez menos
residentes e luta em agonia pela sobrevivência. Há
muitas casas e terrenos à venda, mas compradores nem
vê-los. Estas terras deixaram há anos de cativar os
investidores. Só os velhos ficam, os novos partem
para as cidades.
Em São Pedro de Rio Seco tem-se assistido, nos
últimos anos, à fuga dos habitantes para outras
paragens, em Portugal ou no estrangeiro, à procura
de melhores condições de vida. A desertificação
parece imparável e ameaça apagar do mapa até as
localidades onde nasceram cidadãos de reconhecida
notoriedade na sociedade portuguesa. E a verdade é
que já esses famosos se viram forçados a abandonar
as suas aldeias natal.
Eduardo Lourenço é um cidadão da aldeia – quem sabe
o último, não por desmérito dos conterrâneos, mas
porque a taxa de natalidade é reduzida, quase nula.
O escritor é conhecido e considerado pelos moradores
mais velhos, mas ignorado pelos novos. Percebe-se:
vai poucas vezes à aldeia e “nos últimos meses
nenhuma”.
Edviges Rocha, de 91 anos, lembra-se “como se fosse
hoje do menino Eduardo”, que desde muito cedo
demonstrou ser “diferente” das outras crianças. “Ele
sempre foi muito certinho, inteligente e bom rapaz.
Nunca se meteu em confusões”, diz a idosa, com
saudades das visitas do escritor. “Ele tem mais que
fazer”, intromete-se Maria Albano, de 74 anos, para
quem Eduardo Lourenço “tem feito pouco pela terra”.
“Olhe! Estamos para aqui abandonados, cada vez com
menos gente.”
Na aldeia já há poucos familiares do escritor.
Quando vai a São Pedro de Rio Seco passa pela casa
do primo Augusto Limão, de 76 anos, com quem tem
relações de “alguma proximidade”. Este maquinista
reformado dos comboios de Moçambique também “não
está optimista” com o futuro da terra, porque “não
consegue arranjar condições para segurar os mais
novos, apenas entreter os mais velhos. No nosso
tempo havia duas escolas para as 80 crianças. Hoje
há apenas 12 e a escola já está sentenciada de
morte”.
Tânia Dias e Pedro Miguel são dois dos alunos da
terra. Nenhum sabe quem é Eduardo Lourenço. “O nome
dele está ali escrito na placa, mas eu não sei quem
é”, diz o rapaz, entretido a tentar segurar o cão
que tinha fugido. A sua colega estava mais
interessada em testar a bicicleta nova. Na aldeia é
raro ver duas crianças juntas – mais fácil é
encontrar Amélia e Anabela, duas funcionárias do
centro social, a entregar refeições em casa dos mais
velhos. A força da interioridade fechou infantários
e abriu lares de idosos.
Mas em Porto de Ovelha, na outra extremidade do
concelho de Almeida, não há nem uma coisa nem outra.
A última criança a nascer na terra do
procurador-geral da República (PGR), Fernando Pinto
Monteiro, foi Nélson Gomes Monteiro, que já conta 12
anos. É o mais novo dos 46 habitantes da povoação
atravessada pelo Rio Côa. O rapaz não tem com quem
brincar e debate-se com os problemas de quem teve o
azar de nascer numa terra sem futuro. Levanta-se às
06h30 para tomar o caminho da escola e só regressa
às 19h00. “Está muito tempo fora de casa, mas é para
o bem dele. Estamos longe de tudo e não temos uma
estrada em condições, não temos autocarros, não
temos nada”, desabafa a mãe, Gracinda Monteiro. A
sua filha, de 21 anos, é a próxima a deixar a
aldeia: “Está toda a gente a fugir daqui e eu também
vou fazer o mesmo”, diz Patrícia Monteiro. “Mais dia
menos dia Porto de Ovelha vai ficar sem nenhum
habitante.”
MENOS HABITANTES
O novo PGR ainda domina as conversas dos poucos
residentes, menos a cada ano que passa e que nem
sequer têm um café para ver a bola na televisão ou
jogar às cartas. Poucos partiram e voltaram, a
maioria partiu apenas. Fernando Pinto Monteiro é dos
que não regressou. “Se tivesse voltado não chegava
onde chegou. Nesta terra só se safou quem saiu
daqui”, observa José Alexandre, de 79 anos, a gozar
na terra a reforma, resultado de muito suor deixado
anos a fio a trabalhar em França. António Pereira,
de 64 anos, também ex-emigrante em França, é ainda
mais categórico: “Nesta terra apenas se vai conjugar
o verbo morrer. Não vai cá nascer mais ninguém.” “Se
o Fernandinho – como o PGR é tratado com carinho na
aldeia – ficasse cá, acha que ele hoje era quem é?
Claro que não”, pergunta e responde João Monteiro,
para quem as aldeias foram feitas “apenas para
nascer e depois morrer. Para fazer a vida tem de ser
fora daqui”. António Sacadura Pereira, presidente da
Junta de Freguesia de Porto de Ovelha, também está
apreensivo quanto ao futuro da aldeia, mas quer
“continuar a trabalhar” por “melhores condições de
vida”. “É terrível ver as ruas desta aldeia sem
crianças, sem alma. É o preço da interioridade e a
factura de muitos anos de abandono”, diz o autarca.
Em Gagos, no concelho da Guarda, a palavra “abalou”
é a resposta quando se pergunta pelos donos das
muitas casas desabitadas. Na aldeia onde nasceu o
cardeal Saraiva Martins residem umas 60 pessoas,
quase todas idosas e contemporâneas do prelado, que
todos os anos revê os amigos na terra. As casas
antigas – algumas em adiantado estado de degradação
e outras recuperadas – envolvem a Igreja Matriz. No
Largo Saraiva Martins está plantada uma oliveira,
cujo verde contrasta com o mato que já invade o
parque infantil deserto e agora quase inútil. As
crianças escasseiam. “A aldeia não tem futuro, só cá
ficaram os velhos”, diz António Dias Santos, de 72
anos, reformado da Força Aérea, ex-seminarista e
vizinho do cardeal Saraiva Martins, um homem
“ímpar”. “Eu também fui seminarista ao mesmo tempo
que o Saraiva Martins nas desisti. Não tinha
vocação.”
Maria dos Prazeres Santos é vizinha e “grande amiga”
do cardeal Saraiva Martins. “Ele vem cá todos os
anos em Agosto, mas por pouco tempo. Cumprimenta as
pessoas e depois vai à sua vida”. O cardeal “é uma
pessoa muito especial”, que faz questão de conservar
a habitação onde nasceu há 74 anos. “Ele desde muito
cedo demonstrou que tinha vocação para servir Deus.
Era um rapaz muito pacato e inteligente”, diz a
mulher, que tem um irmão padre em Seia.
Quando Almeida Santos, presidente do PS e
ex-presidente da Assembleia da República, vai à sua
casa em Vide, onde nasceu, injecta um pouco de ânimo
e enche o ego dos poucos habitantes da aldeia do
concelho de Seia, outra vergada à força da
desertificação. Entranhada entre as serras da
Estrela e do Açor, tem perdido nos últimos anos
grande parte da população, uma fuga acelerada pelo
violento incêndio do Verão de 2005 que destruiu
grande parte do património natural e da única fonte
de rendimento dos seus habitantes: a agricultura de
subsistência. Vide é uma aldeia com duas caras. No
Verão é bastante animada e muito povoada, mas no
Inverno mais parece um deserto. As escolas estão sem
crianças, mas o lar de idosos e o centro de dia
encontram-se lotados.
João Mingote, de 52 anos, proprietário do único bar
da aldeia, está desanimado, prestes a desistir e a
partir. “Não temos condições para aguentar por muito
mais tempo. Não é possível a aldeia sobreviver
quando, por exemplo, tenho de ir todos dias à
escola, em Seia, levar e buscar o meu filho. Isto
para evitar que ele acorde às 06h00, de madrugada.”
Na aldeia já houve de tudo e agora há quase nada.
Alfredo Santos, de 81 anos, ainda se lembra dos
tempos em que, ao final da tarde, a rua principal
estava repleta de gente, novos e velhos. “Hoje somos
poucos e contam-se pelos dedos de uma mão aqueles
que têm menos de 50 anos”, diz o ex-emigrante no
Canadá.
À semelhança de Almeida Santos, também a cidadã
anónima Isabel Nobre de Oliveira reparte a sua vida
entre Lisboa e Vide. A aldeia serve “para retemperar
forças” e recuperar do “esforço” de quem vive nos
grandes centros, diz. “Sempre que posso venho para
aqui, mas reconheço que esta aldeia já foi mais
interessante. Há cada vez menos gente, menos
movimento, menos alegria.”
ATRÁS DE MELHORES CONDIÇÕES
Um dos sinais de alarme surgiu na primeira metade do
século XX com a emigração massiva para a Europa e
América Latina.
A procura de melhores condições de vida foi a mesma
que justificou nas décadas seguintes a partida de
milhares de pessoas do Interior para o Litoral do
País. Ou, no mínimo, para as capitais de distrito,
deixando ao abandono – ou condenadas à morte lenta –
inúmeras aldeias, onde faltava electricidade,
saneamento básico e emprego, entre outras condições
essenciais à qualidade de vida. Começaram por ficar
as crianças e os velhos e depois apenas estes.
Os emigrantes que voltaram à terra natal foram
poucos e o País está hoje, em termos populacionais,
claramente divido entre Litoral e Interior, as
grandes capitais junto ao Atlântico e o resto do
País. E a inversão desta tendência é cada vez mais
complexa. O mais que se tem conseguido é a fixação
em algumas capitais de distrito.
REVITALIZAR O MUNDO RURAL
Dalila Rodrigues, historiadora e actual directora do
Museu Nacional de Arte Antiga, é outro exemplo do
percurso de personalidades que nasceram em aldeias
recônditas e agora ocupam cargos de relevância nos
grandes centros, no seu caso em Lisboa. A
historiadora nasceu em Granja, concelho de Penodono,
em 1960. Fez a instrução primária na aldeia mas aos
nove anos mudou--se para a capital de distrito
(Viseu) e depois para Coimbra, onde se doutorou em
História da Arte. Regressou a Viseu para dirigir o
Museu Grão Vasco, mas no ano passado transferiu-se
para Lisboa para assumir a direcção do Museu
Nacional de Arte Antiga (MNAA). A Granja só vai de
férias durante o Verão.
Para Dalila Rodrigues o processo de desertificação
“deve-se à falta de oportunidades dos meios rurais.
O exercício de profissões liberais, por exemplo, não
é possível num meio tão profundamente rural e que
tem a capital de distrito, Viseu, a 70 quilómetros”.
No entanto, a historiadora acredita que “a
reabilitação de actividades tradicionais, o turismo
cultural e, sobretudo, um sério reinvestimento na
agricultura, podem dar origem a um muito
interessante processo de revitalização de aldeias
como Granja”.
Dalila Rodrigues gostaria de regressar um dia à
terra natal. De resto, “a residência na Granja não é
compatível com o trabalho diário em museus, mas é
compatível com a minha actividade de historiadora da
arte”, conclui a directora do MNAA, que em 2005 viu
ser fechada a escola da sua terra por falta de
crianças.
SÓCRATES E O IRMÃO QUE QUASE FICOU PLATÃO
Os pais de José Sócrates nasceram em Vilar de
Maçada, Alijó, mas o primeiro-ministro veio ao Mundo
nu-ma maternidade no Porto. Só depois foi registado
como sendo daquela freguesia do Douro Norte e o seu
irmão mais novo esteve para se chamar Platão. A
povoação, ao contrário das outras, não tem que
recear a desertificação, pelo menos imediata, nem
que não haja quem possa seguir as pisadas da figura
mais conhecida da terra.
A escola primária – um edifício do Estado Novo –
agora de Acolhimento, conta com 26 alunos. Na
Pré-primária andam outros tantos. “Não corre o risco
de encerrar”, garante Maria Eduarda Sampaio,
ex-presidente da Junta de Freguesia de Vila de
Maçada e actual vereadora do pelouro da Educação e
Saúde na Câmara de Alijó.
É uma das pessoas que mais de perto convive com a
família de José Sócrates e conta uma história
curiosa sobre os nomes dos descendentes. É que Maria
Adelaide Carvalho, mãe de José Sócrates, tentou dar
o nome de Platão ao filho mais novo quando o foi
registar em Vilar de Maçada. Maria Eduarda Sampaio
explica: “Foi a própria Maria Adelaide que me disse.
Na altura era o professor Fontes que tomava conta
dos registos na freguesia. Quando ela lhe disse o
nome que queria para o filho respondeu-lhe
peremptoriamente ‘Não! Maria Adelaide, chega de
história’. Convenceu-a a desistir, ela que gostava
muito de nomes de filósofos.” “A família do
arquitecto Pinto de Sousa nem sempre esteve na
aldeia, mudava-se sazonalmente para os locais onde
ele era colocado a trabalhar. José Sócrates e os
irmãos vinham sempre passar as férias aqui. Só em
pequenos espaços de tempo terá frequentado a escola
local, mas fez a comunhão na nossa igreja matriz”,
conta a vereadora da Câmara de Alijó.
José Sócrates passou grande parte da infância longe
de Vilar de Maçada, na cidade da Covilhã, para onde
o pai foi trabalhar. Maria Eduarda Sampaio recorda
que nas férias o primeiro-ministro gostava de
brincar com os outros rapazes. “Existem fotografias
com Sócrates a andar de burro. Gostava de andar de
casa em casa, das famílias de quem os pais eram
amigos e comia por lá. Nunca foi uma pessoa de
cerimónias.”
'HÁ CONSEQUÊNCIAS INEVITÁVEIS'
Os autarcas dos concelhos afectados pela
desertificação sentem-se impotentes para travar o
fenómeno e admitem que há aldeias que nunca mais
terão a população de outros tempos.
A braços com poucos recursos financeiros para dotar
as terras com condições para fixar os habitantes,
tentam tudo para minimizar as consequências da fuga
para o Litoral e a falta de investimento público e
privado. Eduardo Brito, presidente da Câmara
Municipal de Seia, está consciente de que a questão
“não é de fácil resolução” e é preciso “encontrar
novas formas para a resolver”. O concelho de Seia é
um caso paradigmático porque tem dezenas de aldeias
dispersas na Serra da Estrela, algumas com um número
de habitantes muito reduzido.
“Fazer estradas e dotar as aldeias de saneamento e
água ao domicílio já não chega. É necessário
desenvolver outras iniciativas para inverter este
cenário na certeza de que não temos soluções
milagrosas para segurar as pessoas”, diz o autarca,
reconhecendo: “Há consequências que são
inevitáveis.” Em Penalva do Castelo o cenário é
muito semelhante. As taxas de natalidade e
mortalidade igualam-se, mas as pessoas da faixa
etária dos 20 aos 50 anos têm optado por abandonar o
concelho.
Leonídio Monteiro, presidente da autarquia, critica
as políticas de coesão nacional e lamenta que muitas
aldeias “agora com todas as infra-estruturas
básicas, não tenham gente e estejam ameaçadas de
extinção. Em alguns casos o que nos vale é que há
pessoas que regressam à terra de origem depois de
atingirem a reforma”.
GAGOS
N.º DE HABITANTES: 134
LOCALIZAÇÃO: Distrito da Guardado
TAXA DE NATALIDADE: 0%
S. PEDRO DO RIO SECO
N.º DE HABITANTES: 200
LOCALIZAÇÃO: Distrito da Guardado pela última vez
por
TAXA DE NATALIDADE: 1%
VIDE
N.º DE HABITANTES: 843
LOCALIZAÇÃO: Distrito de Guardado pela última vez
por
TAXA DE NATALIDADE: 1%
PORTO DE OVELHA
N.º DE HABITANTES: 46
LOCALIZAÇÃO: Distrito de Guardado pela última vez
por
TAXA DE NATALIDADE: 0%
POPULAÇÃO CONCENTRA-SE MAIS NO LITORAL
VIANA DO CASTELO: 249.848
BRAGA: 830.292
VILA REAL: 223.327
BRAGANÇA: 148.839
PORTO: 1.777.355
AVEIRO: 712.961
VISEU: 394.210
GUARDA: 179.535
COIMBRA: 440.640
CASTELO BRANCO: 208.097
LEIRIA: 457.749
SANTARÉM: 453.913
PORTALEGRE: 126.452
LISBOA: 2.120.752
ÉVORA: 173.432
SETÚBAL: 783.604
BEJA: 160.681
FARO: 391.819