Diário de Notícias - 08
Dez 06
Os
contentores não se inauguram!
Maria José Nogueira
Pinto
Recentemente a Câmara Municipal de Lisboa (CML)
aprovou, por proposta do PSD, uma espécie de
estratégia de luta contra a droga e a
toxicodependência. Nesse saco de coisas soltas, sem
pano de fundo, um acervo de lugares comuns com um
glossário extenso para os menos informados (?)
releva, quase exclusivamente, a criação em Lisboa de
duas salas de injecção assistida, vulgo "salas de
chuto". Foi uma má medida, por diversos motivos que
importa elencar, do geral para o particular.
Esta proposta, não articulada com a do Instituto da
Droga e da Toxicodependência (IDT), em vez de ser
uma resposta solidária e subsidiária da CML ao Plano
Nacional e à Lei da Assembleia da República,
posiciona--se como um capricho partidário-camarário.
O que, numa matéria tão complexa e dramática como o
combate à droga, por definição de âmbito nacional é,
no mínimo, leviano.
Os pontos essenciais de uma política desta natureza
- Prevenir, Tratar, Reinserir - não apresentam
qualquer quantificação (tudo começa e acaba na
vagueza de vocábulos como "aumentar", "diminuir",
"dinamizar", "fomentar"?) nem quaisquer metodologias
de intervenção ou qualquer temporalização.
Ora, sem que tenham sido discutidos os fundamentos
da intervenção, ficou aprovada a localização das
ditas "salas de chuto" que constituem, tão só, uma
medida (discutível) de redução de riscos e/ou danos.
Isto é, confundiu-se uma medida com um objectivo.
Mas mais grave, a opção foi - contra tudo o que é
hoje considerado uma boa prática cautelosa - a de
criar salas fixas, construindo ou adaptando
construções já existentes, em vez de recorrer à
utilização de contentores, móveis e portanto aptos
para as deslocalizações que os fluxos e a involução
ou evolução da medida aconselhassem.
A decisão - que contraria o que dispõe o IDT - tem
terríveis consequências para a cidade. Com o
argumento de que há que poupar as "zonas
residenciais consolidadas" estas duas salas foram
parar a dois bairros problemáticos - O Charquinho e
a Quinta do Lavrado.
Estes bairros, tal como a maioria dos bairros que
resultaram dos realojamentos, somam a periferia
geográfica à periferia social, condenados que foram
por um mau planeamento urbano a serem depósitos de
problemas humanos e sociais.
Todo o trabalho desenvolvido com vista a criar as
condições que os tornassem, progressivamente, "zonas
residenciais consolidadas" cai assim por terra.
A análise SWOT que fizemos àqueles bairros mostra
bem como, onde se procurava erradicar actividades
ilícitas, tráfico de droga e outras, vão agora
desencadear-se dinâmicas sociais negativas, fluxos
migratórios que alterarão o perfil sóciodemográfico,
assustando população idosa num caso, e perturbando a
população activa em processo de estruturação,
noutro.
E como explicar que num bairro onde faltam
equipamentos sociais de primeira necessidade para a
integração das populações se priorize um equipamento
que não beneficia os residentes, antes actuará como
um abcesso da fixação negativo?
Concluo, como muitos outros, por meras presunções
contudo próximas da evidência: no panorama da
capital, pobre em projectos estruturantes, inaugurar
duas salas de chuto pode ser um brilharete. Ora os
contentores não permitem tal desiderato. Numa
estratégia de afirmação do PSD lisboeta, ultrapassar
o PS pela esquerda pode ser um objectivo. Ora a
conformidade com o Plano Nacional, de autoria
socialista, não propiciava essa manobra.
Se a localização fosse em Campo de Ourique, na
Estrela ou em Telheiras, as classes aí residentes
teriam voz para se opor.
A escolha de dois bairros "ocultos", onde a voz da
população dificilmente se ouvirá com a força
necessária é, por isso, óbvia.
Entre os deveres dos vereadores, um há que me parece
essencial: o de amar a cidade e o de cuidar dos
cidadãos. Entre os deveres dos decisores, um há que
me parece essencial: o de tratar seriamente questões
sérias.
Esta opção, que não consta nem do programa
autárquico nem do programa legislativo do PSD, viola
claramente estes dois deveres.
Uma sala de injecção assistida não é um cibercafé e
o combate à droga - desigual, árduo e sofrido - não
pode ser um simulacro de show off
político-partidário.
Os lisboetas e os toxicodependentes mereciam melhor.