Público - 08
Dez 06
Muito filhos, poucos benefícios
Por Ana Taborda
"O Estado entende que os filhos devem descontar
muito pouco. Talvez porque não estejam em vias de
extinção, como os burros de Trás-os-Montes, que dão
mais benefícios, ou porque não são culturalmente
relevantes como a televisão interactiva," afirma
Adelino Mendes, casado e com seis filhos.
Entretanto, "deixa-me deduzir 115 euros por ano por
cada filho em despesas de educação, mas posso
deduzir 745 euros se comprar um painel solar ou 250
euros se comprar um computador," o que significa que
se "podem comprar painéis solares para casas sem
pessoas e computadores para serem usados por
ninguém."
Para além dos 154 euros que o Imposto sobre o
Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) prevê poderem
deduzir-se anualmente por cada dependente, as
despesas de educação são as únicas em que os valores
divergem em função do número de filhos, mas não em
benefício das famílias numerosas: o limite à colecta
é de 617,44 euros e, a partir do terceiro filho ou
dependente, há uma majoração de 115 euros, Mas "este
acréscimo é de apenas 25 por cento do normal.
Portanto, se eu tiver dois filhos, deduzo
aproximadamente 300 euros por cada um. Se tiver um
terceiro, um quarto ou um quinto, só deduzo 115 por
cada um deles, o que é penalizante," explica José
Silva Jorge. Para o sócio e fiscalista da Ernst &
Young, "não é economicamente compensador ter uma
família numerosa, porque os aumentos nas deduções
são marginais e não têm nenhuma comparação com o
nível de despesas e encargos que os filhos
implicam."
Uma situação que tem particular relevância quando
relacionada com os números da natalidade. De acordo
com os dados do Instituto Nacional de Estatística,
em 2005 nasceram 109.457 crianças. Com um índice de
fecundidade de 1,4 filhos por mulher, "Portugal
continua a não assegurar a renovação de gerações e o
défice de nascimentos ronda os 55 mil por ano,"
explica Fernando Castro, presidente da Associação
Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN). Para que
haja renovação de gerações, é preciso que nasçam 2,1
filhos por mulher, e isso já não acontece há mais de
20 anos: "desde 1986 que o índice de fecundidade
anda entre 1,4 e 1,5 filhos, quando ainda nos anos
60 andava na ordem dos três," explica Mário Leston
Bandeira, professor do Instituto de Ciências do
Trabalho e da Empresa (ISCTE), especialista em
demografia. "Se o Estado penaliza quem constitui
família, quem se casa e quem tem filhos, significa
que está a favorecer o envelhecimento da população e
o decréscimo da natalidade," acrescenta Rui Marques,
fiscalista da Confederação Nacional das Associações
de Família (CNAF).
Pequenas famílias
Mas esta situação não é exclusiva de Portugal: em
2005, nenhum país da União Europeia (UE) conseguiu
assegurar os valores mínimos para renovar a
população. O que mais se aproximou foi a França, com
1,94 filhos, seguido da Irlanda, com 1,88,
Dinamarca, Finlândia e Reino Unido, todos com 1,8.
No extremo oposto estão a Eslováquia, com 1,25, a
Eslovénia, com 1,26, a Lituânia, com 1,27, e a
Grécia e República Checa, cada um com 1,28. No
geral, em 2005, a UE registou um volume de
nascimentos de 1,52 filhos por mulher. Tendo em
conta os valores actuais, em Portugal, é preciso
aumentar o índice de fecundidade em 0,7 filhos, o
que implica "convencer uma em cada duas mulheres a
ter mais um filho," acrescenta Fernando Castro. E
isto para que o país deixe de ser o sétimo com a
população mais envelhecida do mundo, e um dos que
tem a natalidade mais baixa.
Os países com um número de nascimentos mais elevados
são, também, os que têm melhores políticas fiscais
de incentivo à natalidade e apoio às famílias: "a
França, a Inglaterra e, de uma forma geral, os
países nórdicos, incentivam claramente a
natalidade", afirma Rosa Freitas Soares, fiscalista
da Deloitte. "Curiosamente, até nos países onde a
tradição familiar parece ser menor, o Estado está
mais disponível para o apoio às famílias, seja nos
incentivos fiscais, seja nos apoios financeiros. Já
para não falar na conciliação entre vida familiar e
profissional, com a possibilidade de trabalho a
tempo parcial para as mulheres," defende Rui
Marques.
Consumo penalizado
Em Portugal, o cenário não é animador: em 2004, das
cerca de 58 por cento de famílias portuguesas com
filhos, 52,3 por cento tinham, no máximo dois. Com
três filhos existiam apenas 4,3 por cento de
agregados e, com quatro, os números descem para os
1,3. No geral, o número de famílias numerosas, com
cinco ou mais membros, não chega aos 10 por cento e
as portuguesas raramente são mães antes dos 30. Para
Mário Leston Bandeira, "a tendência é para a
situação se agravar: o nascimento de poucas crianças
gera efeitos em cadeia. As gerações vão sendo cada
vez mais pequenas e cada vez é mais difícil
assegurar a substituição".
Para alterar esta situação, "não defendemos
condições melhores para as famílias numerosas,
apenas iguais. Aceitamos pagar mais por sermos mais,
mas não muito mais," defende Adelino Mendes, e dá o
exemplo da água: "a câmara de Matosinhos recusa-se a
ajustar os preços, por isso, enquanto uma família
pequena paga 0,53 euros por metro cúbico, nós
pagamos 1,57 euros, porque subimos de escalão, mas
gastamos apenas e per capita o que está definido
pelas Nações Unidas - cem litros de água potável por
dia." De acordo com a APFN, esta situação já foi
alterada em mais de 20 câmaras municipais, mas ainda
há muitas em que esta diferenciação não é feita.
Impostos pouco familiares
Mas, "ao nível da tributação propriamente dita, a
situação ainda é pior: para determinar o escalão do
agregado familiar, o montante divide-se por dois,
mas não tem em consideração se é um casal sem
filhos, com dois ou com quatro," explica Rui
Marques. De acordo com o fiscalista da CNAF, desse
ponto de vista, há sistemas bem mais favoráveis à
natalidade: "em vez de se dividir por 2, divide-se
por 2,1, 2,2 ou 2,5, em função da dimensão da
família." A opinião é unânime: em Portugal, as
contas do IRS só pensam nas famílias com um ou dois
filhos, quando o ideal seria ajustar o rendimento ao
número de elementos da família.
Por outro lado, "os apoios da Segurança Social são
vergonhosos," defende Raul Cotta. Para Saldanha
Sanches, professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa e especialista em assuntos
fiscais, é precisamente aqui que se deve investir:
"a única forma justa de beneficiar as famílias passa
pela atribuição de subsídios directos em dinheiro,
ou seja, aumentar o abono de família e dar esse
valor a todas as famílias," independentemente dos
rendimentos, e "tal como acontece na Alemanha." "Não
me choca que não beneficiemos os que têm mais
rendimentos, mas isso torna o sistema mais difícil
de gerir," acrescenta Saldanha Sanches.
Para os especialistas, as políticas de incentivo à
natalidade não se devem reduzir à vertente fiscal,
mas ter igual expressão nas políticas sociais, de
educação e de habitação. "Em suma, em primeiro lugar
o Estado deve tirar o pé de cima das famílias e, em
segundo, deve reconhecer, através de incentivos ou
apoios, a sua importância," defende Rui Marques. De
acordo com a APFN, em França, as famílias
portuguesas têm, em média, 2,09 filhos: se as
medidas fossem semelhantes em Portugal, a associação
de famílias acredita que a taxa de natalidade em
Portugal poderia rondar esses valores. Carlos Velez
acrescenta uma outra medida: a autonomia do ensino e
da educação. "Cada filho custa um dado valor ao
Estado, o que eu peço é que me dêem esse dinheiro,
em forma de cheque, para que possa educar os meus
filhos no estabelecimento de ensino que quiser,"
explica, assumindo a opção das escolas privadas.
Futuro em xeque
Para já, o futuro não parece promissor. De acordo
com as projecções do INE, a população residente em
Portugal em 2050 diminuirá, podendo oscilar entre os
7,5 milhões, no cenário mais pessimista, e os dez
milhões, no mais optimista. Ainda assim, para
Fernando Castro e Adelino Mendes, estas projecções
são tudo menos realistas: "têm vindo a dourar a
pílula, atrasando uma verdadeira política de apoio à
família por parte do Governo." Mesmo a nível
cultural, a APFN defende que é preciso um discurso
forte e permanente de apoio, sustentado por medidas
de âmbito local. "Para as classes média e média
baixa, ter filhos é quase um luxo: deviam existir
políticas mais substanciais de apoio, ao nível dos
subsídios, mas também dos equipamentos," acrescenta
Mário Leston Bandeira.
Para a família Velez, "o ideal seria que as pessoas
não tivessem medo de ter filhos, porque, com alguns
sacrifícios, as coisas conseguem-se. Se calhar temos
menos tempo livre e não conseguimos comprar uma casa
no campo e outra na praia, mas chega-se lá e é
bastante compensador." Montanhista nos poucos tempos
livres que tem, Adelino Mendes gosta mais da
caminhada do que da euforia efémera de chegar ao
topo e compara isso com a forma como encara a
família: "vejo o cume da montanha, divirto-me a
subi-la e contemplo do alto o sucesso da minha
conquista. Venci-me, superei-me e tenho orgulho
nisso. E muito!"