Público- 04
Dez 06
O Estado não deve gerir a escola, antes
devolvê-la aos seus actores
Portugal não pode continuar a ter políticas tão
centralistas e "iluminadas" se quiser mudar, para
melhor, o sistema de ensino. Deve haver menos leis e
mais autonomia e responsabilização das escolas. E
nada se conseguirá sem envolver as famílias e as
comunidades locais. O que quer dizer que o problema
não está só, para o antigo secretário de Estado da
Educação, nos curricula, nos professores ou nos
manuais escolares. E até se poderiam congelar
por alguns anos as leis que temos. Por José Manuel
Fernandes e Graça Franco (Renascença), fotos de
Pedro Cunha
Coordenador do Debate Nacional de
Educação lançado por iniciativa da Assembleia da
República e que está a ser levado a cabo pelo
Conselho Nacional de Educação, Joaquim Azevedo
entregará em breve o seu relatório-síntese de
centenas de debates ocorridos em todo o país. Com
uma conclusão simples: temos de mudar de paradigma
na organização do sistema educativo.
PÚBLICO - Há 20 anos, integrou a comissão de reforma
do sistema educativo. Sabendo o que sabe hoje, o que
teria feito de diferente?
JOAQUIM AZEVEDO - Estes anos foram de grande
aprendizagem e neles percebeu-se que há um problema
político claro de condução das políticas educativas.
Esse problema é que o modelo hegemónico tem sido
caracterizado por políticas centralistas, estatistas,
de cima para baixo, iluminadas, políticas que não
resolvem o problema. Temos de mudar de modelo.
[Assinale] um ponto em que o sistema deve mesmo
mudar...
Passar a centrar a política educativa nas escolas,
baseando as melhorias em compromissos concretos com
objectivos anuais.
As medidas parecem ir em sentido contrário. É o caso
da colocação dos professores, da certificação dos
livros, do acesso ao ensino superior. Parece que se
quer uniformizar tudo num país onde as escolas
tendem a ser, até pelos alunos que as frequentam,
mais diferentes entre si. Como é possível?
Perguntou a minha opinião...
É a segunda pessoa que, neste programa, diz o mesmo.
É essa também a opinião de Marçal Grilo...
Pessoalmente, não posso concluir outra coisa que não
serem os nossos problemas de natureza política e
estarmos a conduzir os processos de melhoria na
educação de forma errada. Pensa-se que tudo se
resolve com leis. Por exemplo: existe um problema de
disciplina nas escolas? Faz-se um decreto-lei, o
problema fica resolvido...
Mas não fica resolvido.
Claro que não. Por isso é que o tema central dos
debates que tenho vindo a conduzir é o de procurar
saber como vamos melhorar a educação. Qual o modelo,
sendo que este tem de repousar nas escolas, nos
profissionais.
Os professores colaboram? Os professores não
preferem também um sistema centralizado?
Os sindicatos, sim, e por isso, por a situação
servir todos, é que a situação está como está. Daí
que fale numa mudança de paradigma. É preciso muita
reflexão, mas infelizmente ninguém o faz, nem os
partidos políticos. Nós não estudamos, não fazemos
planos com um horizonte temporal alargado.
E este debate não sofrerá do mesmo problema quando,
por exemplo, se fala, nos seus documentos,
genericamente em inclusão, mas não se trata
frontalmente o problema da violência nas escolas?
Este é mais um debate marcado pela ideologia do "eduquês"?
Corríamos esse risco se este fosse um debate
centralista, mas não é. Há centenas de reuniões a
decorrer em todo o país, o debate é completamente
aberto.
Já surgiram ideias interessantes?
Por exemplo, no caso do abandono escolar tem sido
sublinhado que o trabalho tem de ser feito caso a
caso, a começar pela escola e a continuar nas
comunidades locais. Todos têm de intervir, incluindo
os empresários, pois o mundo empresarial não é
inocente relativamente ao abandono prematuro das
escolas. Temos de caminhar para compromissos sociais
locais, concretos.
Incluindo as autarquias?
Tem de haver dinâmicas instituídas que permitam que
exemplos como o de Estarreja sirvam de inspiração.
Lá, a autarquia e os empresários locais estão a
apoiar as escolas e os resultados estão a ser
excelentes. Em Estremoz, os professores, sozinhos,
trataram de encontrar soluções para a
heterogeneidade dentro da sala de aula. Como alguns
autores dizem, numa figura de estilo, os vândalos
invadiram as salas de aula das elites. Contudo, se a
origem social dos estudantes é um factor que pesa
nos percursos escolares diferentes, a verdade é que
muitos outros factores também contam, como a forma
como se lida com essa heterogeneidade.
Somos piores ou melhores a lidar com essa
heterogeneidade?
Piores, e isso explica por que é que esse problema é
tão importante. Neste domínio falhámos: 30 anos
depois do 25 de Abril, a escola não funciona como
integrador social, não proporciona igualdade de
oportunidades.
A que nível da escolaridade a situação é mais grave?
No 10.º ano. É o ano em que o insucesso é maior e
mais alunos desistem. No secundário, perdemos metade
da população e há mesmo zonas do país onde o
insucesso é hoje maior do que há dez anos.
Recomendaria que, já que a lei geral não funciona, o
que a lei deveria dizer é que as escolas poderiam e
deveriam trabalhar de forma diferenciada?
Eu costumo dizer que o melhor é suspender a
legislação e desencadear uma dinâmica nacional, na
escola, passo a passo, com objectivos, e que
aproveitasse os recursos à sua disposição. O Estado
não pode administrar a escola, tem de a devolver aos
seus actores, tem de confiar nas escolas e nos
professores.
Confia-se nos professores?
Esse é um problema da sociedade portuguesa. Ninguém
respeita os professores, só damos deles e das
escolas uma imagem negativa. Assim não se cria uma
dinâmica de confiança. Assim, estamos ao mesmo tempo
a descredibilizar a escola e a mandatá-la para fazer
tudo o que a sociedade e as famílias não fazem. Isto
é suicidário.
Mas o que é que um cidadão, um reformado, um avô,
pode fazer para ajudar uma escola, para intervir?
Pode, por exemplo, em vez de ficar a jogar dominó,
ir ler histórias aos alunos. E onde as autarquias
tomaram a iniciativa temos tido excelentes
experiências.
Quando a "5 de Outubro" não vem estragar tudo...
Sim, porque em nome das regras só se colocam
obstáculos. Há normas, burocracia. No caso que já
citei de Estremoz, o que os professores fizeram foi,
por núcleos de quatro turmas, avaliar os alunos com
dificuldades e criar uma turma a que chamaram "mais"
e por onde estes rodam conforme o tipo de
dificuldades. Mas para fazerem isto tiveram de ter
autorização superior!
E não há o risco de o legislador, olhando para
Estremoz, querer impor por lei esse modelo?
Espero que não. O processo de mudança não pode estar
centrado na [Av.] 5 de Outubro [em Lisboa], tem de
estar na escola. Para isso temos de transformar a
máquina educacional, fazer com que as 3000 pessoas
que deveriam dar apoio às escolas, em vez de andarem
a verificar se cumprem a norma, o façam realmente.
Dever-se-ia suspender, pois, a fúria reformista?
Em muitos aspectos, sim. Passa-se a vida a mudar os
currículos. Julga-se, o que é outro erro, que,
mudando os currículos, se muda escola. É a doença do
curriculismo...
Nessa frente da autonomia não deveriam as
universidades ser agentes de mudança? Não poderiam
trabalhar com as escolas da sua região, até para as
ajudarem a formar melhor os alunos que depois vão
receber?
Deviam, e até podiam já fazer exames específicos de
admissão, mas não o fazem.
Porquê?
Pergunte-lhes, a elas.