Público- 04
Dez 06
Liberdades, opiniões e valores
Mário Pinto
1.A Rádio Renascença é, como constantemente se
apresenta nas suas emissões, uma "Emissora
Católica". Em termos jurídicos, isto significa que é
uma instituição ou empresa "de tendência" (Tendenzunternehmen).
Ora, uma empresa de tendência, como toda a gente
sabe, é uma pessoa colectiva que, no exercício de
direitos constitucionais, se estabelece para adoptar
e defender uma opinião, uma doutrina, uma tendência
determinada.
É isto possível? É sim, senhor: é possível e, mais
ainda, indispensável. Diz a Constituição, art. 12º,
nº 2: "as pessoas colectivas gozam dos direitos e
estão sujeitas aos deveres [consignados na
Constituição] compatíveis com a sua natureza".
Assim, uma pessoa colectiva pode ser confessional ou
perfilhar uma doutrina política ou social, por
exemplo. Essas opções, se consagradas nos seus
estatutos, vinculam os sócios ou associados, bem
como os corpos dirigentes, na prossecução das
finalidades sociais.
Por tudo isto sai enriquecida a liberdade e o
pluralismo democrático. Já lá vai o tempo em que
entre nós se proibiam associações ou empresas de
tendência, no Estado Novo, fazendo-as depender de
uma autorização do Governo.
2. E quanto aos trabalhadores das empresas de
tendência?
A doutrina juslaboral defende que, nas empresas de
tendência, os trabalhadores estão perante um
empregador que, no âmbito do desenvolvimento das
suas actividades, lhes pode pedir o respeito da
posição doutrinária ou ideológica que é
institucional e anterior à entrada do trabalhador na
empresa. Pois ninguém é obrigado a contratar a sua
cooperação numa instituição de tendência: quando
alguém se inscreve, ou aceita cooperar numa
instituição de tendência, naturalmente aceita
respeitar a identidade da instituição. Se aceitou
colaborar com ela sem objecção de consciência, não
pode mais tarde pretender impedir-lhe as orientações
estatutárias em nome das suas opiniões. O vínculo
laboral é contratual, voluntário; não é
institucional, necessário, como no Estado.
3. Outro é o modelo das instituições públicas (que,
por definição, não são de tendência) ou das comuns
empresas económicas (cujo objecto é a actividade
económica e a obtenção do lucro, sem opção
doutrinária, política, social, religiosa ou outra).
É fácil de compreender que, nas instituições onde
não se encontra estatutariamente estabelecida
nenhuma tendência, não possam os dirigentes impor
aos trabalhadores uma opinião, ou limitar a
liberdade de expressão, em nome da opção da pessoa
colectiva, que a não tem. Mas este não é o caso da
Rádio Renascença, visto que ela é uma empresa de
tendência.
4. Assim, o Sindicato dos Jornalistas, ou o seu
órgão deontológico, revela grave ignorância destas
matérias ao condenar que a Rádio Renascença tome uma
posição pelo não no referendo sobre o aborto livre.
E, objectivamente, revela uma "tendência" contrária
à liberdade de tendência das pessoas colectivas, ao
pluralismo institucional de opiniões.
5. Resposta a Prado Coelho. Esta crónica é
quinzenal, e por isso não pude, mais cedo,
corresponder à amável, mas crítica coluna que, já no
passado dia 22, o Prof. Eduardo Prado Coelho (a quem
admiro e prezo, mas de quem me distanciam graves
divergências) dedicou ao meu anterior artigo, no
qual me interrogava sobre uma outra interrogação que
foi o tema do Congresso da Gulbenkian ("que valores
para este tempo?"). Mais precisamente,
interrogava-me a partir da leitura da conferência
inaugural de Eduardo Lourenço, "à sombra de
Nietzsche".
6. Prado Coelho começa por me reduzir (suponho que
foi esta a sua intenção) a uma tríade (João César
das Neves, João Carlos Espada e eu); tríade que, em
sua opinião, diz "aproximadamente a mesma coisa". A
justiça manda que não deixe de responder a esta
insinuação de intenção subliminar. A verdade é que
nem estou com poucos, nem estou fechado. Pelo
contrário, pertenço a uma imensa assembleia, com
aqueles e outros meus estimados amigos, em que todos
somos uma miríade (não apenas uma tríade); e dizemos
sobre a universalidade. Temos connosco mais de dois
milénios de gerações humanas e o maior volume e rica
diversidade de pensamento e fé que a História
regista.
7. Mas vamos à questão principal. E essa é a da
minha (gentil) crítica às declarações de Eduardo
Lourenço sobre a despenalização do aborto
voluntário.
Prado Coelho duvidou das declarações de Eduardo
Lourenço que eu citei, e escreveu: "creio que esta
resposta é uma versão de Mário Pinto do que Lourenço
terá dito". Mas não é. Eduardo Lourenço disse, de
facto: "trata-se de responder a uma dificuldade
precisa, a um sofrimento, e isso tem que ter uma
solução pragmática, não deve ser resolvido em função
de valores". Quem quiser pode verificar no registo
televisivo; ou então, por exemplo, no Diário
Económico de 26.10, onde se lê, entre aspas, isto
que ele disse. Confesso: só porque fui acusado da
coisa feia que é citar mal, me permito a vaidade de
dizer que Prado Coelho não devia ter presumido tão
facilmente da minha pseudo-leviandade; e devia antes
ter-me beneficiado com a presunção de alguma
benignidade.
8. Sobre a questão crucial da divergência,
pergunta-me Prado Coelho: "mas lutar contra o
sofrimento das pessoas não é em si mesmo um valor?".
Claro que é, mais precisamente, uma virtude. Mas,
Prof. Prado Coelho, nunca ouviu falar em conflito de
valores? É por aí que temos de entrar, para
resolvermos o problema da penalização/despenalização
do aborto voluntário. Como é óbvio. O que não é
possível é postular: "sofro, logo aborto"; e recusar
submeter a questão à ética, aos valores, ao que deve
ser. Há sofrimento justo e sofrimento injusto; se
não, não haveria penas - acha que é preciso
discutirmos esta pobre postulação?
9. Por cima de tudo, há outras maneiras de ir em
auxílio do sofrimento de uma mulher grávida, que não
seja atirar-lhe "liberalmente" com a única saída
bárbara do aborto voluntário, causador, por sua vez,
de indiscutível sofrimento humano, físico e moral.
Ou esta é a única solução "pragmática"?...
10. Quem ler o acórdão do Tribunal Constitucional,
que aliás é longo, logo verá que os juízes passaram
todo o tempo a julgar dos valores em conflito - e do
conflito dos valores - e não a deitá-los fora da
questão, como parece ser a opinião de Eduardo
Lourenço e a de Prado Coelho. E deve sublinhar-se
que só por um voto ganhou a tese de que o sim à
pergunta do referendo pode não violar a Constituição
- isto é, no caso, o princípio da inviolabilidade
(do valor) da vida humana intra-uterina.
A democracia é uma boa instituição, mas destrói-se
quando os votos se determinam pela paixão, pelo
capricho, pelo obscurantismo - porque a sua ideia é
de valor. Professor Universitário